segunda-feira, 17 de dezembro de 2007

Foto: Escultura de neve na China

* Escultura de neve "Romantic Feelings" em Harbin, na província de Heilongjiang, China. Da Reuters.


segunda-feira, 10 de dezembro de 2007

Central da Periferia no Haiti

* O Haiti é não aqui? Regina Casé mostra no Central da Periferia como jovens haitianos vivem na periferia. Exibido em 9 de dezembro de 2007. Vídeo aqui.

quarta-feira, 5 de dezembro de 2007

JC: A Vida Mambembe

* Série de reportagens assinada por Fabiana Moraes sobre a vida de artistas de circos que circulam pela periferia. Publicada em de 23 de outubro de 2006 no Jornal do Commercio, ganhou o Prêmio Esso 2007 na categoria Regional 1.

Sobrevivendo sob a lona

São nove da noite e Maria Aparecida de Albuquerque, a Cida, 40 anos, está apressada: pinta os lábios de vermelho rapidamente, coloca sombra escura, escova os cabelos. Veste um maiô preto com lantejoulas, bem cavado, sobre a meia arrastão. Dá um beijo no filho Diego, de 12 anos, portador de paralisia cerebral, e sai correndo: está na hora da dona de casa, casada, dois filhos, transformar-se na maravilhosa Shirleide, a mulher que todas as noites canta sucessos de Gretchen ou Calypso para uma platéia que paga R$ 1 para entrar no circo Trans-América, um dos poucos circulando na periferia no Recife. Às vezes, são 300 pessoas aplaudindo. Às vezes, apenas 30. Por mais contraditório que pareça, Shirleide não se importa tanto com o número de espectadores, mas Cida está sempre na expectativa: ela sabe que o café da manhã e o almoço do dia seguinte dependem do dinheiro que seu filho mais velho, Diogo, 18, vai trazer da bilheteria.

Para Shirleide, a vida é bem mais glamourosa: além de rebolar, sorrir e ser aplaudida, ela também é admirada enquanto rodopia no ar usando a lira (circunferência de ferro pendurada no alto da lona) no número de balé aéreo. Cida, por sua vez, tem que cozinhar diariamente para cerca de 15 pessoas, costurar as roupas já gastas dos artistas do Trans-América e levar o filho menor, duas vezes por semana, para a fisioterapia. O trabalho é árduo. Diogo pesa cerca de 60 quilos e não anda. Ela precisa de dois ônibus para chegar até Afogados, onde seu filho se trata.

Enquanto ela vai, o marido, Gerson Cardoso da Silva, 55, fica cuidando do espetáculo e de assuntos burocráticos relativos ao circo que adquiriu há cerca de 13 anos. Os problemas são muitos, e variados: há o pagamento dos integrantes da trupe, a lona que está rasgada, o sumiço do equipamento de som, a contratação da banda que animará o espetáculo de logo mais. Gerson faz as vezes de animador. Por volta das 20h30, ele entra no trailer usado como cabine de som e de lá chama os artistas ­ inclusive a esposa Cida/Shirleide.

“Convido a todos para a viagem de ilusão e fantasia! senhoras, senhores e crianças, o sonho vai começar!”, diz ele, enquanto o picadeiro é invadido pelo trapezista e palhaço Ricardo, 24, que mostra o giro espacial, um número onde o artista faz várias evoluções usando os braços como apoio, ou apenas as pontas dos pés. Enquanto o rapaz gira a vários metros no chão, um homem bêbado entra no circo e fica observando a façanha.

Nesta semana, o Trans-América estava na quarta etapa de Rio Doce, local com maior “produto interno bruto” do que, por exemplo, a Favela do Rato (Comunidade do Pilar), onde a tenda havia sido armada antes. Quanto mais pobre é a platéia, mais mirrada é a renda do circo. Em Rio Doce, a média do público animou seu Gerson, que viu cerca de 100 pessoas irem até a lona nos dias de atrações como shows de brega e bailarinas seminuas.

Ele chama a próxima estrela: é o Palhaço Chupetinha, que, sem maquiagem, é o garoto Lardi, de apenas seis anos. Ele adora a profissão e quer ser como o pai, Laudionor Lima da Silva, 26, o Palhaço Mutreta. No picadeiro, o menino canta a música Eu faço cócegas e faz gestos obscenos – mexe os quadris, os genitais, mostra o dedo médio – para a platéia. É um espetáculo meio triste e constrangedor, mas é assim que Lardi ajuda o orçamento familiar. As apresentações continuam até a chegada do convidado da noite: é a drag queen Sempre Quita, uma celebridade entre as lonas da periferia. O público delira, Chupetinha pula no palco, felicíssimo, e faz uma espécie de performance com a drag, que entoa uma música onde se ouvem palavras como “cadela” ou “vagabunda”.

É o 10º bairro que o Trans-América visita este ano (e Quita, como é chamada pelos fãs, faz sucesso em todos). Além de Rio Doce e Favela do Rato, eles já estiveram em Roda de Fogo e Maranguape 1. Na primeira semana, o ingresso custava R$ 2 para adultos e R$ 1 para crianças. Agora, o preço é único: apenas R$ 1 para ver o incrível engolidor de fogo (de novo Laudionor, que também é pirofagista e cabeleireiro), o palhaço Fuzuê, os equilibristas Rodrigo e Diego. Seu Gerson, pode-se dizer, tem um bocado de sorte: 90% dos seus “empregados” fazem parte de sua família. São filhos do primeiro casamento, genros, noras. Quando o público é pouco, ele vende uns discos, uma caixa de som, tv velha. Dá o apurado a Cida, que compra comida e espera o show do outro dia. (F.M.)


Picadeiro é alternativa para quem quer fugir da fome

O Big Circo Brasil, atualmente rodando em cidades como Ipojuca, Escada e Primavera, abriga dores de diferentes tons. Os empregados são, na maioria, gente que não tinha muita opção e terminou por ali para ter um lugar pra dormir e comer. Entre eles está Eduardo Claudino da Silva, 22, também conhecido como O Incrível Homem do Peito de Aço. O título tem explicação: Eduardo, nascido em Quipapá, interior de Alagoas, há anos sem ver a família, ganha cerca de R$ 20 por semana – às vezes menos – permitindo que uma pedra grande seja quebrada em seu tórax.

“Eles batem com uma marreta, a pedra se divide no meio”, conta ele, entre tímido e orgulhoso por seu número. O peito de carne e osso de Eduardo reclama, mas ele não presta muita atenção. Às vezes dói também na pele, principalmente quando ele entra no picadeiro trazendo a sua Cama Infernal, uma lona dobrada em quatro e forrada com vidro. Ele passa os cacos nos braços, nas pernas, no rosto. A platéia da cidade de Primavera, a 97 quilômetros do Recife, olha sem muito assombro – definitivamente, é tarefa inglória concorrer com o sangue fácil da televisão. Mas Eduardo, transformado em artista que aprendeu a se virar dentro da estrutura precária que é a sua própria vida, tem seus trunfos: ele deita-se sobre os pedaços de garrafas de Rum Montilla quebrados minutos antes atrás da velha lona do Big Circo Brasil e espera que o apresentador Jardiel suba em suas costas. Depois, vira o corpo para cima e uma garota é convidada a também subir no seu corpo. Os cacos de vidro já fizeram o estrago – vê-se sangue em seus braços, costas, rosto. Há sangue também no peito de aço.

O número de integrantes do Big Circo Brasil é, assim como nas outras lonas, bastante flutuante: há pouco menos de dois meses, eram 16. Três artistas saíram quando a estrutura foi desmontada em Escada e seguiu para Primavera. Na mudança, mais duas pessoas se juntaram ao empreendimento de Zenaide Ferreira e Alexandre Jorge, 23, mãe e filho que administram o circo. É uma renovação constante de talentos – entenda-se por isso o talento para cumprir qualquer tarefa do que propriamente um dote artístico. “A maior parte de quem chega não faz nada, quer apenas um canto para dormir. É aqui que eles aprendem alguma coisa”, diz Alexandre, que faz as vezes de apresentador, atirador de facas e palhaço. A mulher dele, Márcia (a Garotinha Mayara), 22, é uma das bailarinas que dançam os sucessos populares ao lado de mais duas meninas. As músicas não se diferenciam do Trans-América e de outros circos circulando no Estado. Amor, paixão e a expressão “toda molhada” são uma constante no picadeiro. “O circo hoje se segura com bailarina e palhaço. Se não tiver piada e mulher bonita, não tem público”, diz Alexandre.

Aos 17 anos, a dançarina Aline Cristina não é exatamente uma mulher voluptuosa. Magrinha, tem rosto e corpo de menina. É novata no Big, que seguiu para acompanhar Sérgio Marcos, 18, contratado para se equilibrar sobre o chamado cilindro japonês e passar fogo no corpo. A função de Aline é “levar a platéia ao delírio”, e, para isso, ela entra no picadeiro usando um biquíni que deixa o bumbum de fora. Sobe e desce ao chão, rebola envergonhadíssima, insinua-se para a platéia. A mãe evangélica não concordou quando a filha, ex-adepta da Bíblia sob o braço, saiu de Ribeirão para se juntar ao equilibrista. Os dois agora vivem em uma barraquinha montada atrás da lona principal. Sustentam-se com R$ 35 por semana. Aline, maquiada de mulher bonita antes de entrar no palco, passa a mão na barriga e sorri. “Acho que estou grávida, minha menstruação está duas semanas atrasada.”

LOUCURA E PURPURINA - A outra novata na lona atende simplesmente pelo nome de Maria. Foi chegando no Big aos poucos, antes da viagem até Primavera. Agora, é uma das novas “artistas”. Ninguém sabe a sua idade, nem a própria. Aparentando pouco mais de 40 anos, Maria é deficiente mental. Já ganhou nome artístico: Paraguaia. Dança no picadeiro repleta de uma maquiagem feita por ela mesma, onde camadas de purpurina dourada enfeitam olhos e bochechas. Sem os dentes da frente, gordinha, ela dança com um vestido curto. Em seu imaginário, Maria, que hoje vive no mesmo barraco de Eduardo Peito de Aço, é uma bailarina. Para o público, no entanto, ela é um bom alvo de piadas e outro motivo para ir até o circo. A intenção é sempre rir e se divertir. Não importa muito bem com o quê. (F.M.)


O mágico Alakazan viu seu circo sumir em um plano de governo

Alakazan está deitado na cama de seu trailer e olha o movimento pela pequena janela. O circo de lona gasta que leva seu nome está armado na Vila Santa Luzia, na Torre, um local extremamente popular incrustado no bairro classe média. De vez em quando, um ou outro garoto chega até ali e lhe pede alguma coisa, baixinho. “Não, hoje não, já lhe dei dinheiro ontem, o que você quer mais?”, diz ele, meio aborrecido. Antes, os meninos ficavam fascinados com os truques do artista. Hoje, nas áreas pobres em que o circo passa, eles não esperam coelhos saindo de cartolas - se o mágico colocar R$ 1 em suas mãos, está feito o extraordinário.
O homem magro, vestindo roupas simples e dono de uma lona que tem como maior tesouro cinco velhos trailers e um Opala de quase 20 anos, já comandou um dos maiores circos do Norte e Nordeste. Wilson Ribeiro da Silva, 58 anos, chegou a empregar setenta pessoas, entre elas coreógrafos, músicos, palhaços, contorcionistas e cozinheiros. Viajava pelo Brasil com equipamentos que eram carregados em duas carretas próprias. Os artistas iam nos quatro ônibus também pertencentes ao mágico. Animais como elefantes, leões e chipanzés eram outros “contratados”. Eram os anos 80 e o Circo Alakazan fazia parte da mítica do “maior show da terra”. Alakazan, já sentado em sua cama e rodeado de caixas com roupas de apresentação e outros apetrechos usados em seus números de mágica, ri meio irônico quando fala dessa época. “O meu circo é o maior do mundo. Ele nunca enche.”

Cerca de 15 pessoas trabalham no local - o número, como já foi dito, nunca é muito certo porque sempre existe alguém chegando ou saindo. Ao contrário de vários de seus pares, que levam a família sob a lona, Alakazan tem apenas um filho - Alakazan Júnior - que trabalha esporadicamente com ele. O rapaz de 26 anos já não se dedica ao equilibrismo. Vive de música. Trocou o arame pelo brega e hoje é o Alakazan dos Teclados.

Há trinta e três anos trabalhando no circo, o mágico e proprietário de lona é sem dúvida um dos nomes mais importantes da arte circense em Pernambuco. Apesar da situação que nem de longe lembra a alegria do Alakazan de anos atrás, quando saía em turnê por Estados como Bahia, Maranhão, Paraíba e até Pará, o artista não pensa em largar o ofício. Vai tentando segurar o show como dá: para não faltar comida, uma das táticas é pedir apoio a comerciantes dos bairros. Caso uma padaria resolva doar pães para os trabalhadores do circo, o nome do estabelecimento é citado nas propagandas diárias, quando o velho Opala circula pelos bairros anunciando as atrações da noite.

Além dos clássicos engolidores de fogo e malabaristas, o anúncio vindo do carro velho chama as grandes atrações: shows de Augusto César, Starboys, Swing no Amor e, de novo, a drag queen Quita. Às vezes, a atração não chega a ser anunciada e é feita à boca miúda. É quando acontecem “números” de strip-tease realizados por Vânia, a mulher de um dos palhaços. Apenas adultos são permitidos nessas ocasiões. “A gente absorve o que está na moda. Eu não gosto, mas o povo gosta”, comenta Alakazan, que não vitimiza a sua condição e assume: sua lona desgastada ainda dá renda. “Mas é preciso pagar bem os artistas e ter bons equipamentos. E para isso é preciso de mais público e de apoio”, fala ele, que viu seu mágico espetáculo começar a ruir nos governos de José Sarney (1985-1989) e Fernando Collor (1990-1992). O último confiscou os Cr$ 22 mil, moeda corrente na época, que Alakazan guardava para manter o circo. “Tive que ir vendendo tudo, atrasei folha de pagamento, os artistas foram embora”. Anos antes, um terrível acidente ocorrido no interior da Bahia já havia contribuído para a decadência da lona, quando um leão matou uma criança, a exemplo do que aconteceria anos depois em Pernambuco, no Circo Vostok. Nunca mais o Alakazan foi o mesmo.

PALHAÇADA E BARRIGA VAZIA - No Gran Londres Circo, comandado por Índia Morena (Margarida Pereira de Alcântara, 63, conhecida nacionalmente entre seus colegas de lona), vive Givanildo Francisco dos Santos, o Palhaço Maletinha, pai de 24 filhos. Oito moram na barraca erguida atrás da lona. Lucas é o mais novo, tem 4 meses, e estava nos braços da irmã Mayara, 5, no dia da primeira visita da reportagem ao local. Os dois, além de outras crianças, brincavam perto da estrutura de uma velha geladeira vazia que cumpria o papel de jaula para uma jibóia, a estrela do show da noite.

Maletinha acaba de ser contratado por Índia, que vai pagá-lo semanalmente, e não apenas os cachês por shows. “Ele é meu melhor artista e entende tudo sobre a armação da lona”, elogia ela, presidente da Associação dos Circenses de Pernambuco. Considerada uma das melhores contorcionistas que o picadeiro pernambucano já viu, ela conseguiu construir uma casa em Muribeca Rua, Jaboatão, mas diz não conseguir passar muito tempo lá. “Meu lugar é aqui na lona.” Faz 53 anos que a sexagenária tem vida mambembe. No trailer em que vive, panelas, comida e roupas de paetês dividem espaço com duas camas. As roupas são o grande orgulho da ex-rumbeira, que, vaidosa, anuncia: “Tenho mais de cinqüenta pares de sapatos”. Presidente da Associação dos Circenses de Pernambuco, ela, desiludida com a classe, reclama: “Os artistas estão se acabando. Hoje, o circo tem só gente morrendo de fome.” Andréa, mulher do Palhaço Maletinha, concorda. “Às vezes, o aperto aqui é muito grande.” (F.M.)

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